
3. DISCURSO DE RIOS
Roland MC 808 / Boss RC 505 / Kaos Quad Pad / Korg Monotron / Citar / Caixinha de Música - Simão Valinho . Voz - Raquel Sousa . Voz / Moog / Piano - Lígia Lebreiro . Letra - Carlos da Cunha
Entre as pedras, que nos montes são um cansaço das coisas,
e a espuma do mar, que é fadiga de infinito,
os rios passam.
Como deuses: irrepetíveis e vários.
"Nuestras vidas son los ríos
Que van a dar en la mar,
Que es el morir"...
Mas quando foi o mar morte de rios ou sequer um susto deles
— o mar, sua pausa entre onda e nuvem?
Água primeira, eternidade em fuga,
estes que nos vêm passar
pedem ao céu a esmola de um barco
para levar para muito longe
o nosso pavor de efémeros…
Nós somos os veios que nos percorrem:
afluentes da infância
(aonde ides sem mim, águas do Vez?)
Tresmalhados regatinhos bulindo pelas encostas,
jorros que os cerros desfraldam sobre a alvorada dos vales, estirados horizontes como o Tejo, o Douro, ou o Minho,
As aguarelas do Cávado.
O vagaroso Mondego
ou esse jovem deus-rio consagrando o lodo e a luz,
O Lima, o lúcido Lima
que tira a forma das margens,
rega os cravos nas janelas,
enche de roxo as promessas de setembro,
diz exorcismos à lua que se penteia
E dá de beber aos pássaros nas mãos de santos…
Rios com cheiro de ninhos,
e tão nossos, tão da nossa intimidade
que nos benzem a casa
e nos batizam os filhos…
Em toda a memória há um rio
ou uma nostalgia dele:
E é quando se inclinam para a noite
que eles nos entram no sono
e nos prolongam a infância.
Infância é não ter memória senão diante de si,
e a minha, cerzida de fios de água,
encheu-me os olhos de imagens.
E é a epifania de um ninho, lá longe,
à beira de um rio.
E o orvalho de um pirilampo,
farolim que se perdeu no sentimento da noite.
E uma folha
caindo por dentro da própria árvore.
E um pé descalço de brisa
nem o silêncio pisando.
E o canto de um rouxinol,
inaudível de tão puro
quando o sol é confidência
ou se faz luar nos rios…
"Nuestras vidas son los ríos
Que van a dar en la mar,
Que es el morir"...
Sons anteriores à palavra,
são discursos na garganta
como os soluços da gente.
Só não sei por que é que às vezes,
diluídos noutra luz, ao vento que bruxuleia
vão falar de ancorar
entre grafismos de peixes
e arabescos de choupos.
Sei apenas que anoitece.
Alma triste destes rios, tão tristes
que até parecem nascidos dos nossos olhos
quando há uma lua no céu e um barco para nos levar…